O relatório da Comissão Técnica Independente sobre os
incêndios de Pedrogão Grande e de Góis que foi apresentado na Assembleia da
República é claro e taxativo: É preciso
rever o sistema nacional de defesa da floresta contra incêndios, com alterações
profundas no combate e na prevenção!
O Primeiro-Ministro António Costa na resposta aos jornalistas sobre o relatório da Comissão Técnica Independente |
Na prática, são ilações que o comum dos cidadãos há muito já
tinha tirado, basta ver as imagens do combate aos incêndios na televisão e
percorrer os caminhos do interior de Portugal para perceber que o sistema não
está a funcionar, quer no combate às chamas, quer a montante, na prevenção dos
incêndios, nomeadamente na redução da carga combustível. Aliás, como ficou
evidente nas imagens da “estrada da morte”, ladeadas por um pinhal denso numa
evidente negligência daquilo que determina a legislação em matéria de protecção
das redes viárias. O relatório é bastante objectivo e crítico nessa avaliação!
Ainda sobre o incêndio de Pedrogão, as conclusões do
relatório são bastante claras: “as consequências catastróficas do incêndio não
são alheias às opções táticas e estratégicas que foram tomadas.” pode ler-se e
este é um elemento que não pode ser deixado passar em claro face à dimensão
humana que assumiu a tragédia do incêndio de Pedrogão.
Daqui emana a necessidade, tantas vezes reivindicada, de incorporar
mais conhecimento técnico no Sistema Nacional de Defesa da Floresta Contra
Incêndios, como também conclui o relatório sem surpresa para ninguém. Os
analistas do comportamento do fogo continuam à margem do sistema, como se não
fosse nessa projecção da evolução do fogo que se decide o sucesso das
operações. Neste domínio, a Escola Nacional de Bombeiros, pode assumir um papel
central, na transferência do conhecimento gerado no meio académico e também na
aquisição de lições práticas obtidas do estudo dos incêndios. Uma outra nota que emana do relatório prende-se com a
necessidade do equilíbrio do investimento entre o combate e a prevenção, uma
matéria que o atual Secretário de Estado das Florestas, Miguel Freitas, já
havia assinalado na Assembleia da República em 2015.
E desse menor investimento na prevenção (e nem sempre os
fundos disponíveis têm sido aplicados nos territórios prioritários) resulta um dado
muito preocupante no relatório da Comissão Técnica Independente: as faixas de
gestão de combustível nos Planos Municipais de Defesa da Floresta Contra
Incêndios dos 11 municípios afetados pelos incêndios de Pedrogão Grande e Góis,
atingem a extensão de cerca de 32 mil hectares. No entanto, no período de 2012
a 2017, apenas foram executados cerca de 19%. O maior constrangimento apontado
foi a falta de cumprimento da legislação ao nível das faixas de rede secundária
(50 m em volta das edificações, 10 m para cada lado da rede viária e 100 m à
volta dos aglomerados populacionais), comprometendo transversalmente
proprietários privados e as entidades gestoras das infraestruturas públicas e
privadas, pode ler-se. A rede primária foi executada na totalidade apenas em três municípios.
Em alguns municípios o grau de execução foi baixo e em quatro outros concelhos
não foi sequer planeada a rede primária.
O tratamento de combustíveis em
mosaico não foi, em termos gerais, utilizado. Estes são elementos que demonstram
a falência do sistema no domínio da prevenção estrutural e que determinam que
também no ICNF se produza uma avaliação séria da real capacidade técnica deste
organismo cumprir com a missão que lhe está acometida no Sistema Nacional de
DFCI.
Do meu ponto de vista, os Municípios e as Comunidades Intermunicipais
(CIM) têm de assumir um maior patamar de responsabilidade, bem como o ICNF. É
certo que o combate aos incêndios florestais apresentou falhas graves, mas a
falta de infra-estruturas de apoio a montante também contribuíram para o
insucesso.
Portanto, a resposta à indignação presente na questão que
surge nos primeiros parágrafos do relatório “no século XXI, com o avanço do
conhecimento nos domínios da gestão da floresta, da meteorologia preventiva, da
gestão do fogo florestal, das características físicas e da ocupação humana do
território, como é possível que continuem a existir acontecimentos como os
dramáticos incêndios da zona do Pinhal Interior que tiveram lugar no verão de
2017?” é óbvia. É preciso mudar profundamente o paradigma!, Olhos nos olhos, o
Governo tem a obrigação de proceder a uma revisão profunda do sistema vigente e
dotá-lo de maior eficácia na utilização dos meios humanos e financeiros,
assegurando a presença de uma força capaz no terreno, todo o ano.
Olhos nos olhos, é preciso olhar de frente para os
acontecimentos de 2017, que com mais de 215 mil hectares de área ardida é a
maior dos últimos 10 anos, e retirar as devidas lições e ilações. Desde logo,
na hierarquia da cadeia de responsabilidade. Mas, é preciso ir mais longe, ao
cerne da questão e sem retirar mérito e valor aos milhares de mulheres e homens
que integram os corpos de bombeiros voluntários, “é tempo de exigir uma nova
estratégia de valorização dos Bombeiros e acabar com as lamúrias e com as
homenagens hipócritas.”, como afirmou Duarte Caldeira, ex-presidente da Liga
dos Bombeiros Portugueses após a leitura do relatório. E eu assino por baixo!
De facto, é urgente mitigar as insuficiências sistémicas da
proteção e socorro em Portugal, e nesse prisma, é fundamental rever o
Dispositivo de meios para o combate aos incêndios florestais que está
alicerçado nos bombeiros voluntários, mas que se revela insuficiente para
responder aos grandes incêndios florestais que lavram dias a fio – o trágico
incêndio de Pedrogão Grande este ativo durante quase uma semana e não foi caso
singular este ano em Portugal. E certamente, não será no futuro!
É preciso outra abordagem à defesa da floresta contra
incêndios, com a presença de meios todo o ano no terreno, com outra capacidade
técnica de intervenção e com o envolvimento de uma estrutura profissional como
vai sucedendo em ali ao lado, na vizinha Espanha, só para não atravessar o
Atlântico e citar, mais uma vez, o exemplo dos EUA. Nesses dois países, existe
um núcleo duro de profissionais que está no terreno todo o ano e que é
completado no período mais critico com o reforço de meios, decorrentes da
contratação sazonal.
É preciso envolver de uma forma mais efectiva e permanente
os recursos das Forças Armadas, é preciso repensar a missão dos GIPS da GNR e
colocar esses meios ao serviço da floresta o ano todo, bem como a Força
Especial de Bombeiros. Os fogos evitam-se! e evitam-se com a prevenção
estrutural, com a sensibilização das populações, com uma fiscalização ativa e
eficaz da aplicação da lei. Quando o sistema falha a montante, não á outro
remédio senão chorar a fatalidade dos incêndios que se avolumam em função da
disposição do São Pedro, como foi evidente este ano em Portugal.
Não sei se a criação de uma Agência para a Gestão Integrada
dos Fogos Rurais, conforme é defendida no relatório da comissão técnica, será
uma solução viável no curto prazo. Pessoalmente, defendo a adoção de uma solução
de transição, integradora, de cariz interdepartamental, como existe nos EUA (National Cohesive Wildland Fire Management Strategy), conjugada
com a “regionalização” do planeamento do dispositivo, conforme sucede em
Espanha. Basta ver as soluções da Galiza, da Andalucia, da Extremadura ou da
Catalunha para perceber da importância no sucesso do sistema, da adoção das
soluções/modelos que melhor se ajustam aos riscos existentes em cada território.
Em suma, a tarefa que se coloca a António Costa não é fácil.
Aguardemos pela reflexão que o Governo irá fazer deste relatório e pelos
anúncios que irão emanar do Conselho de Ministros Extraordinário do dia 21 de
outubro para ver até que ponto houve coragem política para mudar o paradigma!
Miguel Galante (Eng. Florestal)
Gazeta Rural, edição n.º 303 (15.10.2017)