segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Olhos nos olhos, é preciso revolucionar o sistema de defesa da floresta contra incêndios!

O relatório da Comissão Técnica Independente sobre os incêndios de Pedrogão Grande e de Góis que foi apresentado na Assembleia da República é claro e taxativo: É preciso rever o sistema nacional de defesa da floresta contra incêndios, com alterações profundas no combate e na prevenção!

O Primeiro-Ministro António Costa na resposta aos jornalistas sobre o relatório da Comissão Técnica Independente

Na prática, são ilações que o comum dos cidadãos há muito já tinha tirado, basta ver as imagens do combate aos incêndios na televisão e percorrer os caminhos do interior de Portugal para perceber que o sistema não está a funcionar, quer no combate às chamas, quer a montante, na prevenção dos incêndios, nomeadamente na redução da carga combustível. Aliás, como ficou evidente nas imagens da “estrada da morte”, ladeadas por um pinhal denso numa evidente negligência daquilo que determina a legislação em matéria de protecção das redes viárias. O relatório é bastante objectivo e crítico nessa avaliação!

Ainda sobre o incêndio de Pedrogão, as conclusões do relatório são bastante claras: “as consequências catastróficas do incêndio não são alheias às opções táticas e estratégicas que foram tomadas.” pode ler-se e este é um elemento que não pode ser deixado passar em claro face à dimensão humana que assumiu a tragédia do incêndio de Pedrogão.

Daqui emana a necessidade, tantas vezes reivindicada, de incorporar mais conhecimento técnico no Sistema Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios, como também conclui o relatório sem surpresa para ninguém. Os analistas do comportamento do fogo continuam à margem do sistema, como se não fosse nessa projecção da evolução do fogo que se decide o sucesso das operações. Neste domínio, a Escola Nacional de Bombeiros, pode assumir um papel central, na transferência do conhecimento gerado no meio académico e também na aquisição de lições práticas obtidas do estudo dos incêndios. Uma outra nota que emana do relatório prende-se com a necessidade do equilíbrio do investimento entre o combate e a prevenção, uma matéria que o atual Secretário de Estado das Florestas, Miguel Freitas, já havia assinalado na Assembleia da República em 2015.

E desse menor investimento na prevenção (e nem sempre os fundos disponíveis têm sido aplicados nos territórios prioritários) resulta um dado muito preocupante no relatório da Comissão Técnica Independente: as faixas de gestão de combustível nos Planos Municipais de Defesa da Floresta Contra Incêndios dos 11 municípios afetados pelos incêndios de Pedrogão Grande e Góis, atingem a extensão de cerca de 32 mil hectares. No entanto, no período de 2012 a 2017, apenas foram executados cerca de 19%. O maior constrangimento apontado foi a falta de cumprimento da legislação ao nível das faixas de rede secundária (50 m em volta das edificações, 10 m para cada lado da rede viária e 100 m à volta dos aglomerados populacionais), comprometendo transversalmente proprietários privados e as entidades gestoras das infraestruturas públicas e privadas, pode ler-se. A rede primária foi executada na totalidade apenas em três municípios. Em alguns municípios o grau de execução foi baixo e em quatro outros concelhos não foi sequer planeada a rede primária.

O tratamento de combustíveis em mosaico não foi, em termos gerais, utilizado. Estes são elementos que demonstram a falência do sistema no domínio da prevenção estrutural e que determinam que também no ICNF se produza uma avaliação séria da real capacidade técnica deste organismo cumprir com a missão que lhe está acometida no Sistema Nacional de DFCI.

Do meu ponto de vista, os Municípios e as Comunidades Intermunicipais (CIM) têm de assumir um maior patamar de responsabilidade, bem como o ICNF. É certo que o combate aos incêndios florestais apresentou falhas graves, mas a falta de infra-estruturas de apoio a montante também contribuíram para o insucesso.

Portanto, a resposta à indignação presente na questão que surge nos primeiros parágrafos do relatório “no século XXI, com o avanço do conhecimento nos domínios da gestão da floresta, da meteorologia preventiva, da gestão do fogo florestal, das características físicas e da ocupação humana do território, como é possível que continuem a existir acontecimentos como os dramáticos incêndios da zona do Pinhal Interior que tiveram lugar no verão de 2017?” é óbvia. É preciso mudar profundamente o paradigma!, Olhos nos olhos, o Governo tem a obrigação de proceder a uma revisão profunda do sistema vigente e dotá-lo de maior eficácia na utilização dos meios humanos e financeiros, assegurando a presença de uma força capaz no terreno, todo o ano.

Olhos nos olhos, é preciso olhar de frente para os acontecimentos de 2017, que com mais de 215 mil hectares de área ardida é a maior dos últimos 10 anos, e retirar as devidas lições e ilações. Desde logo, na hierarquia da cadeia de responsabilidade. Mas, é preciso ir mais longe, ao cerne da questão e sem retirar mérito e valor aos milhares de mulheres e homens que integram os corpos de bombeiros voluntários, “é tempo de exigir uma nova estratégia de valorização dos Bombeiros e acabar com as lamúrias e com as homenagens hipócritas.”, como afirmou Duarte Caldeira, ex-presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses após a leitura do relatório. E eu assino por baixo!

De facto, é urgente mitigar as insuficiências sistémicas da proteção e socorro em Portugal, e nesse prisma, é fundamental rever o Dispositivo de meios para o combate aos incêndios florestais que está alicerçado nos bombeiros voluntários, mas que se revela insuficiente para responder aos grandes incêndios florestais que lavram dias a fio – o trágico incêndio de Pedrogão Grande este ativo durante quase uma semana e não foi caso singular este ano em Portugal. E certamente, não será no futuro!

É preciso outra abordagem à defesa da floresta contra incêndios, com a presença de meios todo o ano no terreno, com outra capacidade técnica de intervenção e com o envolvimento de uma estrutura profissional como vai sucedendo em ali ao lado, na vizinha Espanha, só para não atravessar o Atlântico e citar, mais uma vez, o exemplo dos EUA. Nesses dois países, existe um núcleo duro de profissionais que está no terreno todo o ano e que é completado no período mais critico com o reforço de meios, decorrentes da contratação sazonal.

É preciso envolver de uma forma mais efectiva e permanente os recursos das Forças Armadas, é preciso repensar a missão dos GIPS da GNR e colocar esses meios ao serviço da floresta o ano todo, bem como a Força Especial de Bombeiros. Os fogos evitam-se! e evitam-se com a prevenção estrutural, com a sensibilização das populações, com uma fiscalização ativa e eficaz da aplicação da lei. Quando o sistema falha a montante, não á outro remédio senão chorar a fatalidade dos incêndios que se avolumam em função da disposição do São Pedro, como foi evidente este ano em Portugal.

Não sei se a criação de uma Agência para a Gestão Integrada dos Fogos Rurais, conforme é defendida no relatório da comissão técnica, será uma solução viável no curto prazo. Pessoalmente, defendo a adoção de uma solução de transição, integradora, de cariz interdepartamental, como existe nos EUA (National Cohesive Wildland Fire Management Strategy), conjugada com a “regionalização” do planeamento do dispositivo, conforme sucede em Espanha. Basta ver as soluções da Galiza, da Andalucia, da Extremadura ou da Catalunha para perceber da importância no sucesso do sistema, da adoção das soluções/modelos que melhor se ajustam aos riscos existentes em cada território.

Em suma, a tarefa que se coloca a António Costa não é fácil. Aguardemos pela reflexão que o Governo irá fazer deste relatório e pelos anúncios que irão emanar do Conselho de Ministros Extraordinário do dia 21 de outubro para ver até que ponto houve coragem política para mudar o paradigma!


Miguel Galante (Eng. Florestal)
Gazeta Rural, edição n.º 303 (15.10.2017)

O renascimento do Programa de Sapadores Florestais

Escrevo estas linhas no regresso de uns dias de férias na Europa Central, longe das notícias do fogo que consome a floresta portuguesa, mas que marcaram o verão em Portugal lá fora. No norte da Alemanha não arde, as florestas crescem em regimes culturais de ciclo longo, com cortes finais aos 60, 80 e até 100 anos nalguns casos. A nossa floresta produtora de material lenhoso é bastante diferente e actualmente nalgumas regiões do País já nem é possível assegurar um ciclo de 20 anos sem fogo, como ficou demonstrado este ano na zona do Pinhal Interior.

E é nesse contexto que o anúncio feito pelo Primeiro-Ministro António Costa, em Oliveira do Hospital, da reactivação do Programa Sapadores Florestais merece destaque e uma análise mais fina do seu potencial impacto.

Cerimónia de entrega de 20 novas eSF em Oliveira do Hospital

Esta medida é mais uma evidência do empenho de António Costa na valorização da floresta em Portugal. E não deixa de ser curioso que quase 20 anos depois de Capoulas Santos ter presidido à criação do Programa de Sapadores Florestais em 1999 ser, novamente, sob a sua tutela que os Sapadores Florestais voltam a ganhar protagonismo. Aliás, o primeiro sinal dessa vontade política já havia sido dado no quadro da Reforma da Floresta, quando foi revisto o valor da comparticipação do Estado no Serviço Público, traduzindo-se num aumento de 5 mil euros/ano das transferências de fundos para as entidades gestoras dessas equipas.

É certo que a tarefa a que o Governo se propõe de criar 200 novas equipas de Sapadores Florestais até ao final da legislatura (conforme exigiu o Parlamento) não será fácil, mas é fundamental para o Pais e aqui não posso deixar de assinalar a oportunidade desperdiçada pelo anterior Governo para proceder à reactivação deste programa, tendo por base o estudo de avaliação que foi então realizado.

Não obstante todo o empenho político de António Costa e Capoulas Santos, segue-se o mais difícil – reestruturar o programa para assumir um novo patamar de desempenho e encontrar a respectiva fonte de financiamento público, que permita enquadrar as novas equipas sem descurar a manutenção das existentes, algumas em funcionamento desde o seu início em Maio de 1999. E esse é um desafio da maior importância para o novo titular da pasta das Florestas, pois este programa encontra-se claramente subvalorizado no quadro atual do ICNF.

Esta é uma oportunidade impar para atender ao enquadramento da natureza especifica das entidades gestoras e assegurar o necessário acompanhamento técnico, bem como para preparar um robusto programa de formação profissional que permita concretizar o estatuto profissional do sapador florestal.

No que respeita à questão do financiamento, uma questão central para o sucesso desta medida, a solução encontrada em 2009, ancorada no Fundo Florestal Permanente terá de ser revista, pois a manutenção deste modelo de financiamento tornar-se-á insustentável a prazo. Atualmente, das verbas anuais de 20 milhões de euros angariadas pelo Estado na ecotaxa aplicada sobre os combustíveis, cerca de metade é desde logo canalizada para o Programa de Sapadores Florestais.

A reactivação do Programa de Sapadores Florestais é um investimento de futuro, estratégico na política de defesa da floresta contra incêndios. As 500 equipas de sapadores florestais vão constituir um corpo de profissionais qualificados, que operam no terreno 365 dias por ano e que vão desenvolver uma ação relevante quer na gestão dos combustíveis florestais, quer na sensibilização e informação das populações como durante as acções de combate e sem esquecer o papel que poderão deter na implementação do programa de fogo controlado.

É certo que os Sapadores Florestais por si só não são uma panaceia para o problema dos incêndios florestais em Portugal, mas devidamente suportados num programa robusto e em estreita articulação com os demais agentes que operam no terreno, poderão dar um contributo útil e válido para a protecção das florestas e dos espaços rurais. Assim haja capacidade para aproveitar e materializar esta oportunidade!

Miguel Galante
(publicado online no site da Gazeta Rural em 30.8.2017)


PS: Uma nota final para o anúncio feito pelo Secretário de Estado das Florestas Miguel Freitas da criação de uma equipa de Sapadores Florestais na Mata Nacional do Bussaco. Esta é uma boa notícia para reforçar a capacidade de protecção do valioso património florestal ali existente.