quarta-feira, 2 de maio de 2018

O que podemos fazer para ajudar a floresta?


“Black skies” (Céus negros) foi a denominação atribuída pelos investigadores Mark Beighley e Albert C. Hyde ao novo cenário apresentado no estudo que realizaram sobre os incêndios florestais em Portugal.

Este novo cenário agrava as projeções que estes investigadores norte-americanos haviam apresentado em 2009 e que tiveram expressão na tragédia vivida no ano passado, que se saldou em mais de cem vitimas mortais e mais de 500 mil hectares de área ardida.

Com Mark Beiglhey, após a apresentação dos resultados do estudo (ISA, 20.4.2018)


Este novo cenário resulta da constatação de que Portugal entrou numa “nova era de fogo” e pinta de negro a possibilidade do País poder experimentar, no futuro, um ano verdadeiramente catastrófico em matéria de incêndios florestais, projectando uma área ardida na ordem de 750 mil hectares, algo que nunca ocorreu no nosso País.

A fundamentação para esta cenarização encontra-se nos impactos das alterações climáticas e na conjugação de um conjunto de circunstâncias bastante adversas, nomeadamente meteorológicas, que possam ocorrer em simultâneo em todo o País.

Conforme concluiu Mark Beighley, aquando da apresentação pública do estudo, para mitigar o problema dos incêndios rurais no nosso país é necessário adotar um conjunto de soluções estratégicas nos próximos anos, na perspetiva de uma intervenção mais equilibrada e persistente entre os eixos da prevenção e do combate na próxima década.

O diagnóstico traçado e que serviu de sustentação ao exercício de cenarização não foge daquilo que tem sido concluído nos últimos anos, evidenciando fragilidades estruturais há muito identificadas, mas que tardam em ter uma solução estruturada e duradoura no quadro das políticas públicas.

O agravamento dos problemas do despovoamento do interior e do envelhecimento da população são desafios que exigem uma nova abordagem estrutural das políticas públicas e, sobretudo, uma consistência e persistência no tempo que não tem acontecido no passado e que deve estar no centro da preparação da programação dos fundos comunitários no horizonte de 2030.

Decorrente desses problemas estruturais, são exigidas medidas operacionais que promovam uma nova visão para o sistema de Proteção Civil, uma tese que é vincada no segundo relatório da Comissão Técnica Independente que analisou os grandes incêndios florestais de Outubro. A constatação da incapacidade do sistema em responder aos grandes incêndios é um outro fator crítico que foi sinalizado e que já havia aqui sido apontado no rescaldo do grande incêndio de Tavira em 2012.

O estudo também conclui da necessidade de uma política mais assertiva no que respeita à intervenção no território, nomeadamente na gestão da vegetação e na redução das ignições. Nesse quadro, a revisitação do modelo das Zonas de Intervenção Florestal e o reforço das acções de sensibilização e de fiscalização da aplicação da Lei são apontadas como medidas que requerem maior atenção da parte dos decisores políticos, sendo ainda proposta, nesse domínio, a criação de uma linha telefónica dedicada para a denuncia de situações anómalas.

O elevado número de ignições que todos os anos são contabilizadas no nosso país, um verdadeiro absurdo quando comparado com outras realidades do sul da Europa, conjugado com a dificuldade da resposta do sistema, sobretudo, em períodos mais prolongados de ocorrência simultânea de grandes incêndios, explicam o pessimismo quanto ao futuro.

Tendo tido a grata oportunidade de conhecer o especialista Mark Beighley em 2004, aquando da sua primeira visita ao nosso país, por ocasião da realização da avaliação do sistema de prevenção e combate aos incêndios florestais no rescaldo dos grandes incêndios de 2003 e do subsequente acompanhamento dos vários estudos[1] que, entretanto, tem realizado, é fácil concluir que o relatório que nos apresentou deve merecer uma leitura atenta e pode constituir a base de partida para a edificação do novo “Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra os Incêndios Rurais”.

É preciso mudar o paradigma, com assertividade e com uma visão realista do futuro. É preciso adotar um planeamento estratégico que consagre a proclamada integração dos vários departamentos do Governo que contribuem para a solução, conforme é inscrito na missão da nova Agência para a Gestão Integrada para os Incêndios Rurais.

Este relatório aponta, de uma forma bastante objectiva e pragmática, os caminhos a seguir. Acredito que, com a determinação e coragem política que o Primeiro-Ministro António Costa em colocado neste assunto, este estudo não ficará esquecido na gaveta, ao contrário do que sucedeu com o relatório de 2009.

Portanto, conclui-se que a resposta à questão que dá título a este texto está nas mãos dos Portugueses! O cenário é negro e é preciso um grande envolvimento da Sociedade Civil para conseguir inverter o rumo. O futuro dirá se o País despertou, de facto, para a complexidade do problema dos incêndios florestais e se foi agarrada a oportunidade para traçar um novo caminho.

Miguel Galante (Eng. Florestal)
Gazeta Rural, edição n.º 315 (26.4.2018)


[1] Os vários estudos realizados pelo perito norte-americano Mark Beighley sobre os incêndios florestais em Portugal estão acessíveis no site do Instituto Superior de Agronomia, em: https://www.isa.ulisboa.pt/vida-no-isa/destaques/eventos-internos/20180420-apresentacao-do-estudo-portugal-wildfire-management-in-a-new-era-assessing-fire-risks-resources-and-reforms

A importância da árvore no espaço urbano


Tendo presente os impactos do aquecimento global nas cidades, as Nações Unidas escolheram como tema a relevância das árvores e das florestas urbanas e peri-urbanas para a qualidade de vida no meio urbano. Por todo o país sucederam as iniciativas de plantação de árvores em escolas e em jardins públicos, que contribuíram para sensibilizar as pessoas para a importância das árvores.

O Parque Florestal de Monsanto, cuja gestão florestal foi certificada pelo FSC, é um bom exemplo da importância das florestas urbanas para a qualidade de vida nas cidades

Mas este ano, a celebração do Dia Internacional das Florestas também ficou marcada pela iniciativa do Governo de sensibilização para a limpeza da floresta em torno das habitações. De certo modo, esta ação simbólica foi mais um passo no grande desígnio do Governo de preparar o País para evitar que se repita a tragédia humana do ano passado.

De facto, tem sido bastante intenso o empenho do Governo na promoção da protecção das pessoas e bens, na protecção das casas e das aldeias. A ação governativa no que respeita às florestas não se fica por aí. Foram abertos concursos para acesso aos fundos públicos que irão apoiar a silvopastorícia na protecção dos incêndios.

A promessa anunciada pelo Ministro da Agricultura de uma nova orgânica para o ICNF em Março ficou pelo caminho. Tal não invalida essa necessidade premente de reorganização dos serviços do Estado responsáveis pela floresta. É necessário reorganizar a estrutura orgânica, mas também rejuvenescer e reforçar a estrutura técnica e também operacional. Essa demora demonstra da complexidade da reforma daquele departamento do Estado, que assume um papel central na desejada mudança do paradigma da floresta em Portugal.

Entretanto, pelas mãos de Capoulas Santos voltou o anuncio da criação da Empresa de Gestão e Desenvolvimento Florestal, que terá sede em Figueiró dos Vinhos e também a nova Agência para a Gestão dos Incêndios Rurais viu a sua Lei Orgânica aprovada em Conselho de Ministros.
Também em Março foi assinada a instalação do Laboratório Colaborativo dos incêndios florestais, uma plataforma de partilha e de desenvolvimento de conhecimento que fazia falta no nosso País, conforme já se havia assinalado neste espaço de opinião.

Em suma, Março voltou a ser um “mês das florestas”. Um mês em que a floresta assumiu protagonismo junto da Sociedade Civil e, neste domínio, merece destaque a mobilização dos portugueses que elegeram o monumental sobreiro “assobiador” como a “Árvore Europeia do Ano” e que permitiu levar mais longe a nossa árvore nacional. Neste particular, importa deixar uma palavra de saudação à UNAC que apresentou a proposta de nomeação deste sobreiro singular.

A Sociedade Civil também se mobilizou na recuperação das áreas ardidas. Por todo o País realizaram-se acções de arborização que envolveram milhares de portugueses dos 8 aos 80 e que se empenharam em devolver o verde aquelas paisagens que foram tingidas de negro no verão passado.
Termino como o assunto que serve de tema a esta crónica – a importância da árvore no espaço urbano. E aqui quero fazer minhas as palavras de Fernando Medina, o edil da Câmara Municipal de Lisboa na valorização do Parque Florestal de Monsanto, o pulmão verde da capital e o único parque urbano da Europa com certificação de gestão florestal sustentável e que é objecto de investimento anual de 4 milhões de euros da parte da Câmara Municipal de Lisboa na gestão ativa daquele espaço florestal.

Esta nota final sobre o Parque Florestal de Monsanto visa enfatizar a multiplicidade de usos dos espaços florestais. Existe mais vida para além do material lenhoso e dessa perspectiva, era fundamental que o Governo retirasse da gaveta a Estratégia Nacional para as Florestas e colocasse em prática as linhas orientadoras que o estruturam.

A mitigação do problema dos incêndios florestais constitui um desígnio nacional, mas é preciso olhar para a floresta no seu todo.

Miguel Galante (Eng. Florestal)
Gazeta Rural, edição n.º 313 (2.4.2018)

(Breve) ensaio sobre a cegueira (dos fogos)


Temos assistido por estes dias a um estado geral de esquizofrenia sobre a limpeza das faixas de proteção em torno das habitações e aglomerados populacionais, com a produção quase diária de recomendações, clarificações das recomendações e até com a publicação de legislação interpretativa da legislação (Decreto-Lei n.º 10/2018, de 14 de fevereiro)…

Escreve sobre esta matéria Manuel Carvalho, jornalista do PUBLICO conhecedor da floresta, que "Por muito que critiquemos a lei, por muito que admitamos que é impossível limpar milhares de hectares de árvores e matos em torno das aldeias ou instaladas ao longo de milhares de quilómetros das estradas do interior, ainda que saibamos que vai haver cortes errados, especulação dos empreiteiros, omissão, queixume e protesto, a lei em causa tem uma enorme virtude: ela expressa um apelo dramático para que se faça tudo o que houver e puder ser feito para proteger a floresta".

De facto, reconheço essa “enorme virtude” da consciencialização da população portuguesa, mas a verdade é que seria importante que todo este esforço imenso de sensibilização estivesse assente numa estratégia concertada entre os vários Ministérios e Departamentos Governamentais e entre a Administração Central e as Autarquias, ou seja, se existisse, de facto, uma estratégia de comunicação.
Na visita que efetuei aos EUA em 2011, constatei da importância que é dada à proteção das habitações no interface com o espaço rural/florestal. Desde logo, porque é privilegiada a madeira na construção das habitações. No entanto, a abordagem é feita de forma estruturada, com base em programas Federais e Estaduais, com planeamento estratégico e com fundos públicos associados, envolvendo os Municípios e os serviços técnicos, sem a confusão que temos assistido por cá e de que as missivas recentemente enviadas pelas Finanças constituem o corolário final de toda esta esquizofrenia.

Percebe-se a urgência do Governo em “mostrar serviço” após o desastre do ano passado. Percebe-se, também, que as coisas não podiam continuar como estavam. Agora, o que não se percebe é esta falta de estratégia e de liderança na condução de um processo tão sensível como este.

Depois, existe um outro aspeto que deve merecer reflexão em todo este processo – a aplicação do conhecimento técnico e científico na definição dos normativos para a gestão da vegetação. Se olharmos para aquilo que sucede em outras partes do mundo, verifica-se, por exemplo, que na América do Norte apenas é exigida a intervenção numa faixa de 30 metros, o que reduz significativamente o volume de investimento a realizar. Na Austrália, por seu turno, preconiza-se uma solução ajustada ao nível de risco do local, que determina a realização de faixas de segurança de num raio de 30 ou 50 metros. Ali ao lado, na vizinha Espanha, na Catalunha apenas é exigida a intervenção numa faixa de 25m, tanto para casas individuais como para aglomerados urbanos, mas, na Galiza, as medidas legais em vigor já são semelhantes aquelas adotadas em Portugal.

Gostava, contudo, de aprofundar um pouco mais a solução adotada em França. Tal como em Portugal, é exigida a intervenção num raio de 50m. No entanto, a lei determina que a limpeza dos terrenos deve ser uma tarefa compartilhada entre vizinhos, o que faz todo o sentido pois o vizinho que tem o pinhal ou o eucaliptal ou um terreno inculto, com matos, não tem de pagar sozinho, do seu bolso, o ónus de proteger o bem (habitação) de um terceiro, só porque a autarquia autorizou a construção daquela habitação…

Face ao exposto, como já tive oportunidade de assinalar noutras ocasiões, justificava-se uma análise mais profunda do diploma que estabelece o sistema nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios – Decreto-lei n.º 124/2006, de 28 de junho. Uma análise participada, que sinalizasse os aspetos menos conseguidos da lei, os constrangimentos encontrados na sua aplicação e que apontasse soluções exequíveis para uma melhor concretização dos princípios de proteção das pessoas e bens no terreno. Soluções que passam necessariamente pelo envolvimento ativo das autarquias – Comunidades Intermunicipais, Câmaras Municipais e Juntas de Freguesia e das Organizações de Produtores Florestais, pois uma floresta bem gerida é uma floresta protegida!

Espero que estas águas de março tragam alguma sensatez e lucidez aos nossos governantes e que seja possível parar para pensar e olhar para este problema complexo num patamar acima da cegueira que tem pautado a ação governativa recente. É certo que a responsabilidade da proteção da floresta e dos bens e das vidas humanas acomete, em primeira instância ao Estado, mas é preciso sensatez para os cidadãos percebam o seu papel e possam ser envolvidos, de uma forma consequente, na mitigação do flagelo dos incêndios florestais em Portugal. Não é com leis feitas em cima do joelho, campanhas que, em vez esclarecerem, transmitem informações erradas e ainda confundem mais as pessoas que vamos conseguir vencer este enorme desafio.

Miguel Galante (Eng. Florestal)
Gazeta Rural, edição n.º 311 (27.2.2018)