quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Recuperar o tempo perdido

Foi nesses termos que o Primeiro-Ministro António Costa se dirigiu à comunicação social no passado domingo, na cerimónia de entrega de 44 viaturas ao abrigo do programa de reequipamento de equipas de sapadores florestais. «Os sapadores florestais são um elemento essencial para aproximar a prevenção do combate aos incêndios florestais», disse António Costa nessa ocasião, salientando que fazem «um trabalho absolutamente fundamental». António Costa reafirmou, ainda, a aposta do Governo nos Sapadores Florestais, tendo deixado a promessa do Governo criar mais 200 equipas até 2020, ao mesmo tempo que irá ser promovido o reequipamento das equipas mais antigas.

O Primeiro-Ministro António Costa na cerimónia de entrega das novas viaturas aos Sapadores Florestais

Dessa intervenção, importa reter uma outra mensagem, do “tempo de longo prazo”, que valoriza a dimensão estratégica da intervenção das políticas públicas, nomeadamente “na capacidade de revitalizar economicamente o interior, condição essencial para a criação de emprego, que fixe e atraia populações”. De acordo com o Primeiro-Ministro é nesta dimensão que entra a “Reforma da Floresta”, que tem como objecto principal “dotar a nossa floresta de uma capacidade de viabilidade económica que permita fazer uma gestão que seja uma fonte riqueza para as populações”.

No meu ponto de vista, António Costa abordou, de uma forma clara, o aspeto crítico para vencermos a “Guerra do Fogo” - a dimensão social dos incêndios florestais. Num debate recente na SIC Notícias, por ocasião da passagem de seis meses sobre a tragédia de Pedrogão Grande, o Prof. Xavier Viegas, investigador da Universidade de Coimbra, questionava, com grande sentido de oportunidade, Tiago Oliveira, o presidente da Estrutura de Missão para a Instalação do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais, sobre a forma como a população será envolvida no desenho do novo modelo, pois esse envolvimento é fundamental para o sucesso da desejada mudança do atual paradigma.

Num Pais com mais 15 mil ignições por ano (“um recorde em relação a outros países com clima semelhante”, segundo o Prof. Filipe Duarte Santos) e cujas causas são de origem humana em 99% das situações é fácil perceber por onde se deve abordar o problema dos incêndios florestais – na redução do número absurdo de ignições. Os acontecimentos de 15 e 16 de Outubro são uma evidência expressiva do muito trabalho que ainda há a fazer nesse domínio.

Aliás, era previsível que este ano podia correr mal. Em Abril, a Ministra da Administração Interna alertava que os incêndios que estavam a ocorrer “eram preocupantes porque neste primeiro trimestre tivemos um número anormalmente elevado de ignições”. No entanto, e face à situação de seca que o Pais atravessou, nem a Protecção Civil, nem o ICNF ou a GNR, tiveram a capacidade de agir em antecipação na mitigação do problema. O que sucedeu no fatídico domingo de 15 de Outubro foi o resultado da inação do Sistema de DFCI face ao agravamento do risco meteorológico de incêndio que a passagem do furacão Ofélia antecipava...

O Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) avisou, com 72 horas de antecedência, a Proteção Civil que aquele seria o dia mais perigoso do ano.
Depois, temos a falta de uma política consistente e integrada de protecção das casas e dos aglomerados populacionais no espaço rural e peri-urbano. Também neste domínio central, aquilo que temos verificado, ano após ano, é a inexistência de uma política realista, mobilizadora da população, que permita transpor para o terreno, de uma forma efectiva, as disposições inscritas na legislação vigente – Decreto-lei n.º 124/2006, de 28 de junho.

António Costa anunciou, no Congresso da Associação Nacional dos Municípios Portugueses, uma linha de crédito de 50 milhões de euros para os Municípios promoverem a gestão de faixas de proteção às vias e às localidades, podendo o Estado substituir-se aos proprietários que não cumpram. No entanto, não só se revela uma verba limitada face à dimensão do problema, como falta uma linha programática de acção que lhe dê suporte e permita estabelecer prioridades para a intervenção no território e, consequentemente, para a assertiva alocação dos fundos públicos e uma ação eficaz na proteção das aldeias.

O inicio de um novo ciclo autárquico, decorrente das eleições de Outubro, somado com a dimensão de intervenção supramunicipal das CIM, que o Secretário de Estado das Florestas tem estado empenhado em valorizar, constituem duas boas condições de partida para alicerçar uma política nacional efetiva nesse domínio central de intervenção, conforme evidenciaram os incêndios florestais deste ano que destruíram milhares de casas e empresas – só no incêndio de Pedrogão Grande cerca de meio milhar de casas foram, total ou parcialmente, destruídas pelas chamas.

De facto, foi a dimensão social que transportou os acontecimentos vivenciados este ano para um novo patamar, para uma “nova geração de fogo”, conforme caracterizou Mark Beighley, o especialista norte-americano que escreveu num relatório de 2009 que Portugal poderia viver uma tragédia sem precedentes, com uma área ardida superior a 500 mil hectares, conforme veio a suceder.

A abordagem da dimensão social para responder a esta “nova geração de fogo” implica uma maior responsabilização colectiva dos agentes da Proteção Civil, quer em termos da Administração Central, quer na dimensão municipal, da intervenção direta das autarquias. Como tem afirmado o Prof. Xavier Viegas, a população deve torna-se o quarto pilar do Sistema Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios.

Num momento em que a floresta regressa à agenda política, é preciso agir para que o próximo ano não repita as tragédias que o Pais viveu em 2017. No entanto, “para aprender não basta só ouvir por fora, é necessário entender por dentro.”, escreveu o Padre António Vieira no Séc. XVII e é esta mensagem intemporal que deixo ao Governo para reflexão, em jeito de “fecho de contas” de um ano que poderá ter sido saboroso na Economia, mas que deixou muitos amargos de boca no que aos incêndios florestais diz respeito.

Veremos no trabalho da Estrutura de Missão para a Instalação do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais se o Governo aprendeu as lições de 2017 e “entendeu por dentro o problema”. Despeço-me com os votos de um Santo Natal e de um Bom Ano Novo, que endosso em especial para todos aqueles que mais sofreram (e ainda sofrem) com os incêndios florestais, na expetativa da recuperação do tempo perdido, com esperança na resolução dos problemas estruturais que Portugal enfrenta na floresta e também no sistema de Proteção Civil.

Miguel Galante (Eng. Florestal)
Gazeta Rural, edição n.º 307 (18.12.2017)

sábado, 2 de dezembro de 2017

A Guerra do Fogo

A “Guerra do Fogo” foi o mote do debate realizado no Pavilhão do Conhecimento em Lisboa e replicado por todo o Pais nos Centros de Ciência Viva. Tendo como pano de fundo o cenário negro pintado pelos devastadores incêndios florestais que assolaram o País, este também foi o mote de um artigo de opinião da lavra do Prof. Viriato Soromenho-Marques, no rescaldo dos trágicos incêndios florestais de 15 de outubro e serve de inspiração para este texto.

De facto, foi isso que assistimos este ano - uma guerra me várias frentes contra os incêndios florestais, uma guerra em que o País foi derrotado em toda a linha – desde a prevenção ao combate e à protecção das populações. Perderam a vida mais de 100 pessoas e arderam mais de 500 mil hectares expondo a nu as fragilidades de um País cada vez mais desigual e de um sistema de defesa da floresta contra incêndios que faliu.

O fogo entrou pelas aldeias serranas a dentro, onde espalhou o pânico e a morte
A grande lição que se retira destes fogos é que o sistema criado em 2006 está falido e não foi capaz de responder aos desafios que se colocavam de tornar o território menos vulnerável e de responder a incêndios cada vez maiores, mais severos e devastadores – os números falam por si: Feitas as contas, Portugal respondeu por quase 2/3 da área ardida no sul da Europa!

Os problemas não são de agora, nem têm uma resposta milagrosa. Desde o desmantelamento e descapitalização progressivo das estruturas regionais e locais do Ministério da Agricultura, à falta de políticas consistentes e persistentes de desenvolvimento rural, somado com o despovoamento do interior, são fatores que têm contribuído para um abandono constante do “Portugal Interior”, do país rural distante dos centros de decisão.

O saldo desta Guerra do Fogo é, pois, claramente negativo para o País. Perderam-se vidas humanas, destruíram-se famílias, perdeu-se floresta, milhares e milhares de hectares de recursos naturais, de material lenhoso, de biodiversidade e de identidade!

O Governo agiu face ao desastre. Após os incêndios de 15 de outubro, foram adotadas, em Conselho de Ministros, um vasto conjunto de medidas que apontam os caminhos para o futuro, que procuram dar uma resposta integrada e multifacetada a um problema que deve mobilizar todo o Pais – os incêndios florestais.

Reconhecido há muito pelos Portugueses como o principal problema ambiental do Pais, para vencer esta “guerra do fogo” exige que se vá ao cerne do problema e que, a meu ver, compreende três grandes valências: (1) Uma nova cultura de protecção civil, com um envolvimento efectivo das autarquias e das populações na protecção das habitações e das aldeias, (2) a especialização do combate aos grandes incêndios florestais, com a incorporação do muito conhecimento técnico e científico já produzido e (3) a valorização dos recursos naturais do interior do País, com base em políticas públicas ajustadas à realidade regional.

Apesar das dificuldades do caminho, é preciso procurar as oportunidades. E nesse aspeto, Coimbra volta a ser uma lição! O manifesto emanado da conferência “Incêndios, territórios e fragilidade económica e social: Pensar o país inteiro” realizada, no início de Novembro, na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra aborda as questões relacionadas com o território, a floresta, a pequena agricultura familiar, o desenvolvimento dos espaços rurais e o papel da administração pública e da responsabilidade social e política.

É esta visão de conjunto que deveria nortear a intervenção da Unidade de Missão para a Valorização do Interior. As condições de vida precárias que os Portugueses puderam ver nas reportagens televisivas dos dramas dos incêndios florestais evidenciam que existem por esse Pais fora aldeias inteiras de portugueses que vivem em inaceitáveis condições de precaridade, uma realidade inadmissível no século XXI, num Estado Democrático de Direito, integrante da União Europeia!

Por outro lado, é, também, urgente reformar e evoluir o sistema de gestão e combate aos incêndios florestais, mas per si será insuficiente face à dimensão global da demanda. É preciso ter a coragem de ir mais além! Sem pessoas, sem criar condições de suporte para a fixação da população no interior do Pais, nas serranias do norte e centro, sem criar mecanismos de valorização económica dos recursos, sem combater o abandono da floresta, a Guerra do Fogo será perdida! Sem nada mudar, a tragédia de 2017 será, necessariamente, novamente repetida!

Como afirmava o Prof. Viriato Soromenho Marques, “a guerra do fogo será lenta e dolorosa”. O Pais tem de se preparar para isso, com a adoção de uma estratégia pensada no longo prazo e com políticas públicas realistas para o desenvolvimento do interior. Este deveria ser um desígnio prioritário na acção do Governo para a segunda metade do mandato.


Tal, implica um amplo debate público e um “pacto de regime” parlamentar que permita a necessária estabilidade das políticas públicas, nomeadamente na negociação dos fundos comunitários com Bruxelas. Este é o momento para lançar esse caminho, de diálogo franco com o país real. Caso contrário, daqui por 20 anos, muito provavelmente, estaremos a fazer o mesmo lamento que fazemos hoje perante a oportunidade perdida de reformar a floresta portuguesa que emergiu da Lei de Bases da Política Florestal de 1996.

Miguel Galante (Eng. Florestal)
Gazeta Rural, edição n.º 306 (30.11.2017)

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Os dados estão lançados!

«Estamos aqui hoje porque a responsabilidade face às tragédias de Pedrógão e de 15 de outubro têm de ter consequências», afirmou o Primeiro-Ministro António Costa na abertura da conferência de imprensa que encerrou o Conselho de Ministros Extraordinário do passado dia 21 de outubro, na qual o Governo assumiu um conjunto de medidas[1] para responder aos devastadores incêndios florestais que deixaram o Pais em choque.

António Costa, na conferência de imprensa após o Conselho de Ministros Extraordinário de 21 de outubro

No rescaldo dos acontecimentos do trágico 15 de outubro, que se saldou em pelo menos 45 vítimas mortais, centenas de casas destruídas e milhares de hectares de área ardida, o Governo anunciou um conjunto significativo de medidas. Ao todo são 400 milhões de euros para a resposta de emergência no apoio das famílias das vítimas e para a reconstrução do que foi destruído nas regiões afetadas: casas, empresas, animais, potencial produtivo agrícola, com a disponibilização de 328 milhões de euros.

No que respeita à resposta do Ministério da Agricultura, já começou a distribuição de alimentos para o gado que viram as pastagens serem consumidas pelas chamas - esta semana, foram 600 toneladas de rações em cinco bases, com o apoio logístico das Forças Armadas.

O Conselho de Ministros da passada quinta-feira aprovou uma linha de crédito de cinco milhões de euros destinada aos operadores económicos que se disponham a criar parques de receção de madeira ardida, tendo o Ministro Capoulas Santos anunciado também o financiamento para a reposição do potencial produtivo das explorações agrícolas, no valor de dez milhões de euros, e que abrange os prejuízos verificados em culturas permanentes, como vinhas, pomares, olivais, animais, estábulos e outras instalações e também maquinaria e equipamentos. A esta medida soma-se a disponibilização de um montante de 15 milhões de euros para a estabilização de emergência, que inclui a minimização do risco de erosão dos solos.

Mas, o Conselho de Ministros Extraordinário aprovou ainda a Estratégia nacional de proteção civil preventiva, que visa instaurar uma nova cultura de Proteção Civil, com um envolvimento ativo dos Municipios, bem como a “reforma profunda, mas sem roturas” do sistema vigente de Prestação do Socorro e de Prevenção dos Incêndios Florestais. É aqui que se decide o futuro!

Esta reforma, inspirada nas recomendações da Comissão Técnica Independente, centra-se em três ideias de força: (1) aprofundar a articulação entre a prevenção e o combate aos incêndios rurais, (2) aumentar o profissionalismo do sistema e (3) especializar, progressivamente, a atuação no combate aos incêndios florestais, separando as competências das forças que combatem os incêndios rurais daquelas de que protegem pessoas e bens.

“Nada pode ficar como dantes" porque "agora é tempo de executar" afirmou o Primeiro-Ministro no Parlamento no debate da moção de censura apresentado pelo CDS-PP de Assunção Cristas, a ex-Ministra da Agricultura do Governo Passos Coelho. O Governo agiu. As medidas tomadas no Conselho de Ministros Extraordinário são positivas e apontam nesse sentido!

Portanto, este é o momento para agir. E, nesse sentido, António Costa, anunciou a criação de uma Unidade de Missão, na sua dependência directa, para conduzir “o processo de transformação” para um modelo em que sejam reforçados os meios de Protecção Civil, dando prioridade ao eixo da prevenção, da proteção da floresta.

O Ministério da Agricultura tem aqui uma oportunidade ímpar para assumir uma nova centralidade. Conforme é preconizado na Resolução do Conselho de Ministro, irá ser realizado o “necessário robustecimento do ICNF”. De facto, é urgente reforçar a capacidade técnica de intervenção no terreno e assumir em pleno as responsabilidade que detém na coordenação do pilar da prevenção estrutural, um dos domínios que também falhou nos incêndios florestais deste ano. Mas é preciso ir mais além, o Ministério da Agricultura tem de assumir a sua quota-parte da liderança de um processo de revitalização do mundo rural, que, na verdade, é o cerne da questão.

Os dados estão lançados! E muito do sucesso da reforma profunda anunciada do sistema de protecção da floresta e do combate aos incêndios florestais recai nos ombros de Tiago Oliveira, um engenheiro florestal com provas dadas nesta matéria tanto no percurso profissional como na academia e que preside a unidade de missão que terá a difícil tarefa de desenhar até dezembro de 2018 o novo sistema de Defesa Contra Incêndios Rurais. O tempo dirá do sucesso desta escolha, que recebe a aprovação da comunidade técnica florestal. Dentro de uns meses saberemos se o Pais venceu esta batalha na “guerra do fogo”, conforme chamou o Prof. Viriato Soromenho-Marques num oportuno artigo de opinião.

Miguel Galante (Eng. Florestal)
Gazeta Rural, edição n.º 304 (2.11.2017)




[1] As medidas adotadas pelo Governo constam da Resolução do Conselho de Ministros n.º 157-A/2017, publicada em Diário da República no dia 27 de outubro.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Olhos nos olhos, é preciso revolucionar o sistema de defesa da floresta contra incêndios!

O relatório da Comissão Técnica Independente sobre os incêndios de Pedrogão Grande e de Góis que foi apresentado na Assembleia da República é claro e taxativo: É preciso rever o sistema nacional de defesa da floresta contra incêndios, com alterações profundas no combate e na prevenção!

O Primeiro-Ministro António Costa na resposta aos jornalistas sobre o relatório da Comissão Técnica Independente

Na prática, são ilações que o comum dos cidadãos há muito já tinha tirado, basta ver as imagens do combate aos incêndios na televisão e percorrer os caminhos do interior de Portugal para perceber que o sistema não está a funcionar, quer no combate às chamas, quer a montante, na prevenção dos incêndios, nomeadamente na redução da carga combustível. Aliás, como ficou evidente nas imagens da “estrada da morte”, ladeadas por um pinhal denso numa evidente negligência daquilo que determina a legislação em matéria de protecção das redes viárias. O relatório é bastante objectivo e crítico nessa avaliação!

Ainda sobre o incêndio de Pedrogão, as conclusões do relatório são bastante claras: “as consequências catastróficas do incêndio não são alheias às opções táticas e estratégicas que foram tomadas.” pode ler-se e este é um elemento que não pode ser deixado passar em claro face à dimensão humana que assumiu a tragédia do incêndio de Pedrogão.

Daqui emana a necessidade, tantas vezes reivindicada, de incorporar mais conhecimento técnico no Sistema Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios, como também conclui o relatório sem surpresa para ninguém. Os analistas do comportamento do fogo continuam à margem do sistema, como se não fosse nessa projecção da evolução do fogo que se decide o sucesso das operações. Neste domínio, a Escola Nacional de Bombeiros, pode assumir um papel central, na transferência do conhecimento gerado no meio académico e também na aquisição de lições práticas obtidas do estudo dos incêndios. Uma outra nota que emana do relatório prende-se com a necessidade do equilíbrio do investimento entre o combate e a prevenção, uma matéria que o atual Secretário de Estado das Florestas, Miguel Freitas, já havia assinalado na Assembleia da República em 2015.

E desse menor investimento na prevenção (e nem sempre os fundos disponíveis têm sido aplicados nos territórios prioritários) resulta um dado muito preocupante no relatório da Comissão Técnica Independente: as faixas de gestão de combustível nos Planos Municipais de Defesa da Floresta Contra Incêndios dos 11 municípios afetados pelos incêndios de Pedrogão Grande e Góis, atingem a extensão de cerca de 32 mil hectares. No entanto, no período de 2012 a 2017, apenas foram executados cerca de 19%. O maior constrangimento apontado foi a falta de cumprimento da legislação ao nível das faixas de rede secundária (50 m em volta das edificações, 10 m para cada lado da rede viária e 100 m à volta dos aglomerados populacionais), comprometendo transversalmente proprietários privados e as entidades gestoras das infraestruturas públicas e privadas, pode ler-se. A rede primária foi executada na totalidade apenas em três municípios. Em alguns municípios o grau de execução foi baixo e em quatro outros concelhos não foi sequer planeada a rede primária.

O tratamento de combustíveis em mosaico não foi, em termos gerais, utilizado. Estes são elementos que demonstram a falência do sistema no domínio da prevenção estrutural e que determinam que também no ICNF se produza uma avaliação séria da real capacidade técnica deste organismo cumprir com a missão que lhe está acometida no Sistema Nacional de DFCI.

Do meu ponto de vista, os Municípios e as Comunidades Intermunicipais (CIM) têm de assumir um maior patamar de responsabilidade, bem como o ICNF. É certo que o combate aos incêndios florestais apresentou falhas graves, mas a falta de infra-estruturas de apoio a montante também contribuíram para o insucesso.

Portanto, a resposta à indignação presente na questão que surge nos primeiros parágrafos do relatório “no século XXI, com o avanço do conhecimento nos domínios da gestão da floresta, da meteorologia preventiva, da gestão do fogo florestal, das características físicas e da ocupação humana do território, como é possível que continuem a existir acontecimentos como os dramáticos incêndios da zona do Pinhal Interior que tiveram lugar no verão de 2017?” é óbvia. É preciso mudar profundamente o paradigma!, Olhos nos olhos, o Governo tem a obrigação de proceder a uma revisão profunda do sistema vigente e dotá-lo de maior eficácia na utilização dos meios humanos e financeiros, assegurando a presença de uma força capaz no terreno, todo o ano.

Olhos nos olhos, é preciso olhar de frente para os acontecimentos de 2017, que com mais de 215 mil hectares de área ardida é a maior dos últimos 10 anos, e retirar as devidas lições e ilações. Desde logo, na hierarquia da cadeia de responsabilidade. Mas, é preciso ir mais longe, ao cerne da questão e sem retirar mérito e valor aos milhares de mulheres e homens que integram os corpos de bombeiros voluntários, “é tempo de exigir uma nova estratégia de valorização dos Bombeiros e acabar com as lamúrias e com as homenagens hipócritas.”, como afirmou Duarte Caldeira, ex-presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses após a leitura do relatório. E eu assino por baixo!

De facto, é urgente mitigar as insuficiências sistémicas da proteção e socorro em Portugal, e nesse prisma, é fundamental rever o Dispositivo de meios para o combate aos incêndios florestais que está alicerçado nos bombeiros voluntários, mas que se revela insuficiente para responder aos grandes incêndios florestais que lavram dias a fio – o trágico incêndio de Pedrogão Grande este ativo durante quase uma semana e não foi caso singular este ano em Portugal. E certamente, não será no futuro!

É preciso outra abordagem à defesa da floresta contra incêndios, com a presença de meios todo o ano no terreno, com outra capacidade técnica de intervenção e com o envolvimento de uma estrutura profissional como vai sucedendo em ali ao lado, na vizinha Espanha, só para não atravessar o Atlântico e citar, mais uma vez, o exemplo dos EUA. Nesses dois países, existe um núcleo duro de profissionais que está no terreno todo o ano e que é completado no período mais critico com o reforço de meios, decorrentes da contratação sazonal.

É preciso envolver de uma forma mais efectiva e permanente os recursos das Forças Armadas, é preciso repensar a missão dos GIPS da GNR e colocar esses meios ao serviço da floresta o ano todo, bem como a Força Especial de Bombeiros. Os fogos evitam-se! e evitam-se com a prevenção estrutural, com a sensibilização das populações, com uma fiscalização ativa e eficaz da aplicação da lei. Quando o sistema falha a montante, não á outro remédio senão chorar a fatalidade dos incêndios que se avolumam em função da disposição do São Pedro, como foi evidente este ano em Portugal.

Não sei se a criação de uma Agência para a Gestão Integrada dos Fogos Rurais, conforme é defendida no relatório da comissão técnica, será uma solução viável no curto prazo. Pessoalmente, defendo a adoção de uma solução de transição, integradora, de cariz interdepartamental, como existe nos EUA (National Cohesive Wildland Fire Management Strategy), conjugada com a “regionalização” do planeamento do dispositivo, conforme sucede em Espanha. Basta ver as soluções da Galiza, da Andalucia, da Extremadura ou da Catalunha para perceber da importância no sucesso do sistema, da adoção das soluções/modelos que melhor se ajustam aos riscos existentes em cada território.

Em suma, a tarefa que se coloca a António Costa não é fácil. Aguardemos pela reflexão que o Governo irá fazer deste relatório e pelos anúncios que irão emanar do Conselho de Ministros Extraordinário do dia 21 de outubro para ver até que ponto houve coragem política para mudar o paradigma!


Miguel Galante (Eng. Florestal)
Gazeta Rural, edição n.º 303 (15.10.2017)

O renascimento do Programa de Sapadores Florestais

Escrevo estas linhas no regresso de uns dias de férias na Europa Central, longe das notícias do fogo que consome a floresta portuguesa, mas que marcaram o verão em Portugal lá fora. No norte da Alemanha não arde, as florestas crescem em regimes culturais de ciclo longo, com cortes finais aos 60, 80 e até 100 anos nalguns casos. A nossa floresta produtora de material lenhoso é bastante diferente e actualmente nalgumas regiões do País já nem é possível assegurar um ciclo de 20 anos sem fogo, como ficou demonstrado este ano na zona do Pinhal Interior.

E é nesse contexto que o anúncio feito pelo Primeiro-Ministro António Costa, em Oliveira do Hospital, da reactivação do Programa Sapadores Florestais merece destaque e uma análise mais fina do seu potencial impacto.

Cerimónia de entrega de 20 novas eSF em Oliveira do Hospital

Esta medida é mais uma evidência do empenho de António Costa na valorização da floresta em Portugal. E não deixa de ser curioso que quase 20 anos depois de Capoulas Santos ter presidido à criação do Programa de Sapadores Florestais em 1999 ser, novamente, sob a sua tutela que os Sapadores Florestais voltam a ganhar protagonismo. Aliás, o primeiro sinal dessa vontade política já havia sido dado no quadro da Reforma da Floresta, quando foi revisto o valor da comparticipação do Estado no Serviço Público, traduzindo-se num aumento de 5 mil euros/ano das transferências de fundos para as entidades gestoras dessas equipas.

É certo que a tarefa a que o Governo se propõe de criar 200 novas equipas de Sapadores Florestais até ao final da legislatura (conforme exigiu o Parlamento) não será fácil, mas é fundamental para o Pais e aqui não posso deixar de assinalar a oportunidade desperdiçada pelo anterior Governo para proceder à reactivação deste programa, tendo por base o estudo de avaliação que foi então realizado.

Não obstante todo o empenho político de António Costa e Capoulas Santos, segue-se o mais difícil – reestruturar o programa para assumir um novo patamar de desempenho e encontrar a respectiva fonte de financiamento público, que permita enquadrar as novas equipas sem descurar a manutenção das existentes, algumas em funcionamento desde o seu início em Maio de 1999. E esse é um desafio da maior importância para o novo titular da pasta das Florestas, pois este programa encontra-se claramente subvalorizado no quadro atual do ICNF.

Esta é uma oportunidade impar para atender ao enquadramento da natureza especifica das entidades gestoras e assegurar o necessário acompanhamento técnico, bem como para preparar um robusto programa de formação profissional que permita concretizar o estatuto profissional do sapador florestal.

No que respeita à questão do financiamento, uma questão central para o sucesso desta medida, a solução encontrada em 2009, ancorada no Fundo Florestal Permanente terá de ser revista, pois a manutenção deste modelo de financiamento tornar-se-á insustentável a prazo. Atualmente, das verbas anuais de 20 milhões de euros angariadas pelo Estado na ecotaxa aplicada sobre os combustíveis, cerca de metade é desde logo canalizada para o Programa de Sapadores Florestais.

A reactivação do Programa de Sapadores Florestais é um investimento de futuro, estratégico na política de defesa da floresta contra incêndios. As 500 equipas de sapadores florestais vão constituir um corpo de profissionais qualificados, que operam no terreno 365 dias por ano e que vão desenvolver uma ação relevante quer na gestão dos combustíveis florestais, quer na sensibilização e informação das populações como durante as acções de combate e sem esquecer o papel que poderão deter na implementação do programa de fogo controlado.

É certo que os Sapadores Florestais por si só não são uma panaceia para o problema dos incêndios florestais em Portugal, mas devidamente suportados num programa robusto e em estreita articulação com os demais agentes que operam no terreno, poderão dar um contributo útil e válido para a protecção das florestas e dos espaços rurais. Assim haja capacidade para aproveitar e materializar esta oportunidade!

Miguel Galante
(publicado online no site da Gazeta Rural em 30.8.2017)


PS: Uma nota final para o anúncio feito pelo Secretário de Estado das Florestas Miguel Freitas da criação de uma equipa de Sapadores Florestais na Mata Nacional do Bussaco. Esta é uma boa notícia para reforçar a capacidade de protecção do valioso património florestal ali existente.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

A Reforma da Floresta está aprovada. E agora?

No momento em que escrevo estas linhas, já ardeu mais de 100 mil hectares em Portugal, ultrapassando a meta estabelecida no PNDFCI, num registo que faz de 2017 o pior ano da última década. São números que exigem uma reflexão profunda sobre a forma como a política de Defesa da Floresta Contra Incêndios, adotada em 2006, tem sido desenvolvida, sobretudo numa perspetiva da revisão do Plano Nacional de DFCI cuja vigência termina em 2018.

Segundo o ICNF até ao final de Julho já arderam 118 mil hectares em Portugal (na foto, Figueiró dos Vinhos) 

Numa análise dos acontecimentos mais recentes, diria que estamos num momento crítico, decisivo, para encetar uma mudança do paradigma. Miguel Freitas substituiu Amândio Torres na Secretaria de Estado das Florestas e do Desenvolvimento Rural, o que pode ser interpretado como um sinal político nesse sentido.

A Reforma da Floresta está aprovada, na sua maioria. Depois de um emotivo final de sessão legislativa, com um intenso debate político na Assembleia da República que colocou novamente a floresta no centro das atenções da opinião pública (embora, num tom demasiado centrado na “questão do eucalipto”) e que obrigou a um trabalho suplementar do Ministro da Agricultura Capoulas Santos na procura dos equilíbrios possíveis, em sede parlamentar, para o cumprimento dos desideratos do Governo.

E agora? “Miguel Freitas vem para implementar a Reforma da Floresta” destacava o jornal PUBLICO após a tomada de posse e, de facto, é esse o perfil do novo Secretário de Estado das Florestas - um político experiente, conhecedor do sector florestal, com um percurso rico no Ministério da Agricultura, com experiência em Bruxelas, com capacidade técnica reconhecida e com a determinação política necessária para concretizar no terreno as medidas aprovadas na Reforma da Floresta.

A tarefa não se afigura fácil (bem pelo contrário) e a fasquia está bem alta! Não obstante, acredito que que a equipa de Capoulas Santos fica reforçada com a entrada de Miguel Freitas e poderá beneficiar do pragmatismo do novo Secretário de Estado das Florestas para a implementação de uma nova dinâmica na política florestal do Governo.

Pelo trabalho que desenvolveu no Parlamento no domínio dos Incêndios Florestais, alicerçado nos relatórios de que foi relator em 2006 e em 2014, certamente que o papel do Ministério da Agricultura e do ICNF no Sistema vigente de Defesa da Floresta Contra Incêndios será uma das áreas em foco durante o seu consulado no Terreiro do Paço. Os grandes incêndios florestais que têm devastado o Pais assim o ditam!

Também, neste domínio, é preciso operar uma reforma profunda. As linhas mestras da prevenção estrutural que estavam inscritas no Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios não estão a acontecer no terreno, sobretudo naqueles territórios mais vulneráveis como é o caso da região do Pinhal Interior. E, neste domínio em concreto, os acontecimentos no concelho de Mação mereciam um estudo atento da parte do ICNF, nomeadamente, no que respeita à implementação das infra-estruturas de DFCI naquele território, pois é reconhecido por todos que Mação fez uma forte aposta nesse domínio após os trágicos incêndios de 2003.

Diz o povo que nas crises surgem as oportunidades e está previsto o desenvolvimento de uma Área-piloto nos concelhos afectados pelos incêndios de Pedrogão Grande e de Góis. É uma oportunidade única para desenvolver uma nova abordagem no planeamento de uma floresta mais resiliente aos incêndios florestais, sem cair nas tentações da planificação megalómana desenvolvida nas Comissões Regionais de Reflorestação criadas após os incêndios de 2003. O modelo não funcionou e gastou-se demasiado tempo e dinheiro do erário público num exercício de planeamento utópico, com magros resultados no terreno.

O Programa de Sapadores Florestais, criado por Capoulas Santos quando foi Ministro da Agricultura em 1999, é um outro instrumento de política que poderá beneficiar de uma nova dinâmica no quadro da Reforma da Floresta, bem como o Fundo Florestal Permanente.

Feitas as contas, são muitos os trabalhos que o Governo tem pela frente até ao final da legislatura, no que respeita ao sector florestal. Os primeiros passos para encetar a Reforma da Floresta estão dados. Agora, é ter a coragem, o pragmatismo e a visão necessárias para encontrar as soluções para ultrapassar os constrangimentos e por em marcha a Reforma da Floresta no terreno, por forma a contrariar a crónica falta de gestão da floresta, mitigar a vulnerabilidade do território aos incêndios florestais e a dar rentabilidade aos recursos florestais e segurança aos investimentos na floresta.

Termino com umas palavras de felicitação ao amigo José Luís Araújo por mais um aniversário da Gazeta Rural. O mundo rural precisa desta publicação e é de louvar a dedicação que a Gazeta Rural tem colocado na divulgação do melhor do nosso país interior, daquele imenso desconhecido dos Portugueses. Faço votos de continuação do bom trabalho. O nosso país real merece!

Miguel Galante (Eng. Florestal)
Gazeta Rural, edição n.º 298 (29.7.2017)

terça-feira, 4 de julho de 2017

A lição do fogo de Pedrogão: Basta!

Portugal viveu em Pedrogão Grande a maior tragédia de que há memória relacionada com os incêndios florestais. Ainda hoje me custa a acreditar como foi possível 64 pessoas terem perdido a vida naquele incêndio! No entanto, há 10 anos havia sucedido na Grécia uma tragédia humana de contornos muito semelhantes… No pânico, quando fugiam do fogo, dezenas de habitantes de uma aldeia escolheram o caminho errado, tal como em Pedrogão Grande.

E é neste ponto que devemos parar para olhar para esta tragédia e tirar lições para que não se volte a repetir. Nessa perspectiva, aproveitei para reler alguns textos que publiquei neste espaço de opinião na Gazeta Rural e encontrei algumas pistas que apontavam que uma tragédia desta dimensão poderia acontecer em Portugal, mais cedo ou mais tarde. Era apenas uma questão tempo, dado o estado de abandono a que o interior do Pais tem sido votado.

A "estrada da morte", a EN 236-1 onde dezenas de pessoas perderam a vida cercadas pelas chamas

A verdade é que depois do forte impulso reformista do 1.º Governo Sócrates, no rescaldo dos acontecimentos de 2003 e 2005, as instituições têm perdido a força e a determinação que se exigia para fazer a mudança então preconizada. A visão incutida na Estratégia Nacional para a Floresta de 2006 era assertiva – colocava a ênfase na mitigação do risco de incêndio florestal e, simultaneamente, promovia a especialização florestal do território. Infelizmente, não passou de “letra morta”, tal como a revisão que lhe sucedeu em 2015.

E aqui tenho de dar toda a razão ao ex-deputado comunista Agostinho Lopes, que, recentemente, num debate televisivo simplesmente colocou os relatórios produzidos na Assembleia da República em cima da mesa e questionou porque motivo os sucessivos governos têm ignorado as recomendações que são tecidas?

A floresta tem de ser reconhecida pela Sociedade como um desígnio nacional e nessa perspectiva compete ao Governo adotar as medidas conducentes a tal desiderato nas políticas públicas, tanto em termos legislativos como em sede da gestão dos fundos públicos comunitários e nacionais.

A tragédia de Pedrogão Grande tem de ser um momento de viragem! Existem responsabilidade políticas que deverão ser assacadas, com coragem e firmeza! E, nesse domínio, são evidentes as fragilidades do Ministério da Agricultura, que precisa de gente com fibra e com visão para materializar no terreno, de uma vez por todas, uma política florestal ajustada aos desafios e potencial da floresta portuguesa.

No entanto, no anuncio das prioridades da política florestal que o actual Secretário de Estado das Florestas fazia poucos dias antes do incêndio de Pedrogão Grande, deixava de lado a defesa da floresta contra incêndios e essa é uma omissão gravíssima, pois o Ministério da Agricultura não se pode demitir da responsabilidade que detém no pilar da prevenção estrutural!

Não vou comentar, por agora, o debate em torno da diabolização do eucalipto, nem as afirmações recentes que o Ministro Capoulas Santos - “não haverá mais um único pé de eucalipto em Portugal”, expressou no Parlamento a esse propósito.

Não obstante, estou de acordo com o Ministro da Agricultura quando afirma que “o ordenamento florestal é a magna questão que temos pela frente”. Trata-se de “um exercício de longo prazo” e que “só é possível com regras de ordenamento e gestão profissional da floresta”. No entanto, a revisão dos Planos Regionais de Ordenamento Florestal tarda em estar concluída, seis anos depois de este processo ter sido desencadeado…

Também não percebo a pressão que o Governo está a colocar na aprovação no Parlamento da revisão do Decreto-lei n.º 124/2006, quando a proposta do Governo não desbloqueia os constrangimentos da aplicação efectiva no terreno das medidas dispostas no corpo da lei. As imagens da “estrada da morte” são bastante elucidativas do incumprimento da legislação em vigor…

“Porquê?” fazia a manchete do jornal PUBLICO após a tragédia. A resposta é complexa. Desde logo, porque não dispomos de uma cultura de Protecção Civil em Portugal. Depois, porque o Pais continua sem estar preparado para responder aos grandes (mega) incêndios florestais – faltam equipas de profissionais treinados e preparados para gerir estes teatros de operações de maior complexidade; não dispomos de analistas de fogo para apoiar a tomada de decisão na retaguarda e na frente de combate; não temos equipas de profissionais em permanência formadas para combater esses grandes incêndios florestais; os aglomerados populacionais e as unidades industriais continuam sem a devida protecção estrutural, tal como não dispomos de equipas vocacionadas para intervir no terreno após os grandes incêndios para a mitigação de riscos de protecção civil e de controlo de erosão pós-fogo, nem para o planeamento da recuperação ecológica das áreas ardidas. No entanto, existe bastante conhecimento técnico e científico e existem técnicos formados (muitos no desemprego…), mas falta um sistema efectivo que os integre e dê uma resposta cabal, integrada e duradoura ao problema.

Não digo que seria possível evitar o drama ocorrido em Pedrogão Grande, mas falhou muita coisa… quer a montante, na prevenção estrutural, quer no momento da resposta. E os riscos climatológicos decorrentes das Alteração Climáticas dizem-nos que no futuro existe potencial para que a tragédia vivida em Pedrogão Grande se repita, com maior frequência e intensidade.

A Reforma Florestal que o Governo encetou o ano passado é uma peça importante para mudar o paradigma, mas afigura-se insuficiente por si só para fazer essa mudança. Precisamos de criar um território mais resiliente aos incêndios florestais, um território mais competitivo e para isso o Estado tem de investir numa estrutura profissional e dedicada que permita transpor do papel para o terreno as medidas que há muito estão identificadas. Para isso ser uma realidade, a actual estrutura do ICNF não tem capacidade para dar uma resposta cabal (nem sequer para gerir a floresta que lhe compete…) e depositar tudo nas mãos dos privados e das autarquias é querer tapar o sol com a peneira.

A devastadora fúria das chamas do incêndio de Pedrogão Grande, que juntamente com o incêndio de Góis, reduziu a cinza quase cinquenta mil hectares, demonstraram que os incêndios florestais são um problema de uma complexidade cada vez maior, cuja mitigação exige uma resposta política robusta assente num patamar de comando político supraministerial, conforme era recomendado no relatório do Deputado Miguel Freitas que analisou a problemática dos incêndios florestais após os incêndios de 2013.


Em suma, existem muitas lições a extrair deste incêndio e que certamente virão a lume com a avaliação externa independente que está em preparação. O Governo tem de dar um sinal claro que é preciso uma mudança efetiva a vários níveis. Não basta a determinação política que António Costa tem colocado nesta matéria. É preciso ir mais além e a estrutura actual da Administração Florestal já provou que não tem condições para dar conta do recado. Aliás, pelos vistos nem sabia do relatório de avaliação do Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios que havia encomendado e pago…


Miguel Galante (Eng. Florestal)
Gazeta Rural, edição n.º 295 (29.6.2017)

Floresta portuguesa acelera 15000 hectares ao ano…

Na abertura de mais uma edição da FICOR – Feira Internacional da Cortiça de Coruche, o Ministro Capoulas Santos invocou a necessidade de Portugal recuperar a área de floresta perdida nos últimos 15 anos – 150.000 ha. E para concretizar esse objectivo, anunciou a abertura de novo concurso para a florestação de azinheiras, sobreiros e carvalhos, com uma dotação global de 27 milhões de euros.

Efetivamente, é preciso revitalizar a Floresta Portuguesa, um recurso estratégico para o Pais e essencial ao desenvolvimento do interior. No entanto, recomenda-se cautela quando se fala de floresta em Portugal. Desde logo, porque mais de 95% da floresta é privada e depois porque o Estado nem sempre tem dado o melhor exemplo…

Viveiro florestal

Acresce que, à exceção do famigerado eucalipto (prometo que, em breve, me irei debruçar sobre esta matéria neste espaço), nos últimos anos as dinâmicas de arborização têm sido muito pálidas e resumem-se quase em exclusivo na plantação de pinheiro manso e de sobreiro no Sul do País, a coberto dos apoios financeiros, cada vez menos interessantes, dos fundos comunitários.

E é esta avaliação que é preciso fazer, que urge fazer – com objectividade e transparência é preciso aferir os motivos para o desinvestimento que se tem assistido em novas arborizações no nosso país, antes de avançar para anúncios e mais anúncios de abertura de novos concursos do PDR 2020.

Numa altura em que passaram quase 2 anos de Governo da “Geringonça”, teço uma avaliação pouco positiva do mandato no que respeita à Política Florestal. Para além da apressada Reforma (“poucochinha”) das Florestas, de cariz meramente legislativo, pouco se fez que justificasse as expectativas criadas em torno da recuperação da Secretaria de Estado das Florestas. O Secretário de Estado das Florestas tem sido secundarizado pelo Ministro da Agricultura, que qual eucalipto tem "secado" o espaço de manobra política ao Secretário de Estado, que se tem limitado ao papel de representação institucional em feiras e mercados…

No entanto, era preciso mais! muito mais! e a escolha de Amândio Torres para o lugar parecia acertada, face ao seu currículo no setor. No entanto, tem-se revelado um equívoco… O ICNF continua inoperante, as ZIF bloqueadas, o Programa de Sapadores Florestais continua em ponto morto (esta ano, nem o Dia Nacional do Sapador Florestal foi recordado pela Tutela), as Matas Nacionais e os Baldios continuam o ciclo de desinvestimento público, os PROF por rever e a política de prevenção de incêndios florestais no domínio das palavras, sem força de intervenção no terreno.

António Costa afirmou recentemente que a floresta tem de ser uma oportunidade. Acredito que sim, mas para criar essa dinâmica de oportunidade, alguma (muita) coisa tem de mudar no Terreiro do Paço (e na Avenida da República também).

Capoulas Santos vincou novamente em Coruche que o Governo quer repor numa década os 150.000 hectares de floresta que o país perdeu nos últimos 15 anos, salientando querer continuar a política seguida durante a sua anterior passagem pela pasta da Agricultura, "único período em que o montado de sobro aumentou". Pois bem, é aqui que reside o problema do Ministro Capoulas Santos, que parece não querer perceber que os tempos mudaram desde essa altura. O PDR 2020 não tem os mesmos apoios aliciantes para a florestação de terras agrícolas do Reg. (CEE) n.º 2080/92 desse tempo… E os números dos ProDeR falam por si - entre 2007 e 2013 foram florestados menos de 15.000 ha.


"O que pretendemos é ter uma floresta melhor, mais bem gerida, geradora de riqueza e de emprego e menos suscetível aos incêndios florestais. Para isso, é preciso trabalhar em várias frentes ao mesmo tempo, desde logo no ordenamento florestal", disse Capoulas Santos. No entanto, a revisão dos PROF continua por concretizar…


Este é o cerne da questão no que respeita à política florestal em Portugal. Os anúncios e as palavras dos governantes carecem de uma visão assertiva, de diagnóstico  e de cenarização realistas e quando assim não sucede, as políticas derrapam e tal como as árvores, caiem com estrondo!


Miguel Galante (Eng. Florestal)
Gazeta Rural, edição n.º 294 (31.5.2017)

A Reforma (“poucochinha”) da Floresta

António Costa cumpriu com a meta que havia anunciado – no dia 21 de março, por ocasião da celebração do Dia Internacional das Florestas, o Conselho de Ministros reuniu novamente para aprovar o pacote de medidas inscritas na anunciada “Reforma da Floresta”.

As expectativas eram altas e justificadas. António Costa, no rescaldo dos devastadores incêndios florestais do verão passado, anunciou que o Governo iria avançar, de imediato, com a Reforma da Floresta.

António Costa assinalou o Dia Internacional da Floresta 2017 em Sintra

Assim, as medidas agora aprovadas pelo Governo, que foram objecto de uma ampla consulta pública nacional, “vêm responder aos grandes desafios que hoje se colocam à floresta portuguesa”, pode ler-se no Comunicado do Conselho de Ministros. Será?

Vejamos no que constam as medidas aprovadas pelo Governo. A reforma proposta assenta em três áreas de intervenção: gestão e ordenamento florestal, titularidade da propriedade e defesa da floresta, nas vertentes de prevenção e de combate aos incêndios - três vetores estruturais importantes para alavancar o Setor Florestal em Portugal.

O Conselho de Ministros Extraordinário de 21 de março ainda tinha reservado uma surpresa. Tirado da cartola, eis que surge a “Comissão para os Mercados e Produtos Florestais”, com a missão de conciliar estratégias de regulação de mercado dos recursos florestais. As intenções até são boas (e nobres) - a monitorização permanente dos recursos florestais disponíveis e o acompanhamento das condições de mercado existentes, de forma a potenciar uma maior valorização dos produtos florestais e, consequentemente, a rentabilidade obtida com os mesmos. Resta ver, finalmente, o Governo consegue que os mercados florestais deixem de ser uma “zona obscura” da economia...

Apesar do empenhamento político do Primeiro-Ministro e do Ministro Capoulas Santos, o consenso em torno desta nova “Reforma da Floresta” está longe de ser alcançado e aqui importa reter a posição da CAP, que em comunicado, afirmava que a Reforma da Floresta “fragiliza a economia do sector”.

Na apreciação dessa importante Federação do Setor Agrário, o Governo aprovou “um conjunto heterogéneo de diplomas legais e de propostas legislativas de mérito político, consistência técnica e resultados expectáveis muito diversos”. No mesmo comunicado pode ler-se que o conjunto de medidas “não ataca o problema dos incêndios florestais, agrava o desordenamento dos espaços florestais, e fragiliza a economia do sector florestal e promove o abandono florestal”. Uma visão que é partilhada no seu essencial pelo presidente da ANEFA. Pedro Serra Ramos, argumenta que “para ser uma reforma, o pacote legislativo teria de incluir medidas que fossem nesse sentido". Sem fazer juízos de valor, não deixam de constituir sinais que devem merecer a reflexão por parte do Governo e da Assembleia da República, que ainda se vai pronunciar sobre alguns dos diplomas agora aprovados.
As medidas aprovadas pelo Governo, sendo úteis, surgem como peças soltas de um processo que se quer mais aprofundado e integrado. É aqui que reside o cerne da questão - as medidas carecem de uma integração num quadro mais amplo da operacionalização da Estratégia Nacional para as Florestas.

A “Reforma da Floresta” surge apressada, desenquadrada da uma politica florestal nacional robusta, que consiga, de facto, induzir uma nova dinâmica no Setor Florestal. Continua a faltar uma estrutura técnica e administrativa na Administração Central capaz de dinamizar a sua concretrização no terreno da Estratégia Nacional para as Florestas, envolvendo, de forma ativa e concreta, os demais parceiros do sector – Industria, Empresas e Associações Florestais, Municípios, etc, etc.. De igual modo, continuam a faltar mecanismos financeiros e fiscais que permitam tonificar a sua concretização.

É certo que as medidas agora aprovadas podem dar um contributo útil para melhorar alguns dos problemas estruturais da nossa floresta, desde logo para a resolução do (eterno) problema do cadastro da propriedade. No entanto, sem uma visão estratégica e integrada (e com a atual formulação do ICNF) não é possível por em prática tal desiderato e sem essa reforma profunda da máquina da administração florestal, a “Reforma da Floresta” de António Costa corre sérios riscos de se ficar por um conjunto de boas intenções.

Em suma, como cantava Sérgio Godinho, “… portanto, hoje soube-me a pouco”.


Miguel Galante (Eng. Florestal)
Gazeta Rural, edição n.º 291 (13.4.2017)

2016, o início de uma nova floresta?

20 anos volvidos sobre a aprovação na Assembleia da República da Lei de Bases da Política Florestal, importa deitar um olhar critico ao estado em que se encontra hoje a floresta portuguesa. Uns verão o “copo meio cheio”, com mais planeamento, com uma industria de base florestal consolidada, exportadora de bens transaccionáveis e que gera riqueza para o País, outros, pelo contrário, verão o “copo meio vazio”, da floresta devastada por incêndios cada vez mais devastadores e pelo abandono a que tem sido votada, em resultado da perda crescente de rentabilidade, conjugado com o aumento crescente dos riscos a que está sujeita.

Eu olho para trás e vejo, sobretudo, 20 anos de oportunidades perdidas, resultantes da deriva a que a política florestal tem estado sujeita. E o ano que passou espelha bem as consequências dessa deriva. A floresta voltou a ser o pasto das chamas, em mais um Agosto em que os incêndios fizeram a abertura dos telejornais e geraram infindáveis debates sobre a teorização desses mesmos incêndios. E, novamente, das cinzas emanou mais uma Reforma para a Floresta.

A Lei de Bases da Política Florestal - Lei n.º 17/96, de 17 de Agosto, foi aprovada por unanimidade na Assembleia da República
Todavia, 2016 até prometia... António Costa, empossado no final de 2015, retomava a Secretaria de Estado das Florestas e Desenvolvimento Rural na arquitetura do Governo, num claro sinal político que a floresta voltava a ocupar um lugar de destaque na ação governativa, dando expressão e conteúdo ao texto do programa do Governo. Meses mais tarde, em Mação, António Costa presidia às cerimónias oficiais do Dia Internacional das Florestas e reforçava esse sinal político quando pedia “uma floresta à prova de fogo”.

No entanto, um verão mais severo iria demonstrar que a floresta portuguesa não é à prova de fogo, pondo a descoberto todas as fragilidades estruturais, tantas vezes diagnosticadas. No cômputo final, foram contabilizados mais de 150 mil hectares de área ardida, naquele que foi o pior registo da última década. E das cinzas destes fogos, nasce a “Reforma da Floresta”. Anunciada, por António Costa, ainda no rescaldo das chamas, em Outubro, num Conselho de Ministros Extraordinário realizado no COTF – Lousã são aprovadas as bases legislativas dessa Reforma.

Com esse propósito, o Governo colocou 10 medidas legislativas em Consulta Pública, num processo inovador de participação cívica que merece ser sublinhado, na procura do envolvimento da sociedade portuguesa no debate sobre a floresta, que afinal não é de “todos”, mas sim da posse de milhentos proprietários - desde as nano, mini, micro propriedades que povoam o norte e o centro do Pais, até às empresas da industria papeleira e aos grandes proprietários dos sistemas agro-florestais do sul do Pais.

Neste processo, tive a oportunidade de acompanhar o debate promovido pela Ordem dos Engenheiros em torno da Reforma da Floresta. Mas, desse debate, apesar de não ter emanado uma visão que clarificasse o papel da Engenharia Florestal para o desenvolvimento da floresta portuguesa, ressaltou a identificação de um conjunto de prioridades, com o fim da dupla Tutela dos Ministérios da Agricultura e do Ambiente sobre o ICNF, no topo dessa lista.

2016, também, fica marcado pelo arranque efetivo das medidas florestais inscritas no PDR2020 e pelo anuncio da conclusão do processo de revisão dos Planos Regionais de Ordenamento Florestal em Março de 2017 pelo Ministro Capoulas Santos.

Feito um breve balanço de 2016, receio que estejamos perante mais uma oportunidade perdida para a Reforma que o Setor Florestal precisa. Nesta reflexão socorro-me das palavras tecidas pelo meu colega Victor Louro, autor do livro “A Floresta em Portugal - Um apelo à inquietação cívica”, e que num debate televiso alertou para o foco em que é preciso colocar a “Reforma da Floresta” – aumentar a rentabilidade dos ativos florestais e resolver as falhas de funcionamento do mercado!

Na minha opinião é aqui que reside o cerne da questão florestal e não é por acaso que Portugal é o único País da Europa onde a área florestal regrediu, bem como é o único País do sul da Europa onde os incêndios florestais continuam a aumentar. A floresta portuguesa está hoje mais vulnerável que há 20 anos atrás.

É com essa preocupação que iriei assistir, em Santarém, à ultima sessão do períplo regional do Governo sobre a “Reforma da Floresta”, para poder ter uma opinião mais formada e informada sobre a matéria, pois parece-me que os objetivos inscritos em 1996 na Lei de Bases da Política Florestal ainda estão por cumprir na sua generalidade ...


Miguel Galante (Eng. Florestal)
Gazeta Rural, edição n.º 285 (10.1.2017)