quarta-feira, 2 de maio de 2018

(Breve) ensaio sobre a cegueira (dos fogos)


Temos assistido por estes dias a um estado geral de esquizofrenia sobre a limpeza das faixas de proteção em torno das habitações e aglomerados populacionais, com a produção quase diária de recomendações, clarificações das recomendações e até com a publicação de legislação interpretativa da legislação (Decreto-Lei n.º 10/2018, de 14 de fevereiro)…

Escreve sobre esta matéria Manuel Carvalho, jornalista do PUBLICO conhecedor da floresta, que "Por muito que critiquemos a lei, por muito que admitamos que é impossível limpar milhares de hectares de árvores e matos em torno das aldeias ou instaladas ao longo de milhares de quilómetros das estradas do interior, ainda que saibamos que vai haver cortes errados, especulação dos empreiteiros, omissão, queixume e protesto, a lei em causa tem uma enorme virtude: ela expressa um apelo dramático para que se faça tudo o que houver e puder ser feito para proteger a floresta".

De facto, reconheço essa “enorme virtude” da consciencialização da população portuguesa, mas a verdade é que seria importante que todo este esforço imenso de sensibilização estivesse assente numa estratégia concertada entre os vários Ministérios e Departamentos Governamentais e entre a Administração Central e as Autarquias, ou seja, se existisse, de facto, uma estratégia de comunicação.
Na visita que efetuei aos EUA em 2011, constatei da importância que é dada à proteção das habitações no interface com o espaço rural/florestal. Desde logo, porque é privilegiada a madeira na construção das habitações. No entanto, a abordagem é feita de forma estruturada, com base em programas Federais e Estaduais, com planeamento estratégico e com fundos públicos associados, envolvendo os Municípios e os serviços técnicos, sem a confusão que temos assistido por cá e de que as missivas recentemente enviadas pelas Finanças constituem o corolário final de toda esta esquizofrenia.

Percebe-se a urgência do Governo em “mostrar serviço” após o desastre do ano passado. Percebe-se, também, que as coisas não podiam continuar como estavam. Agora, o que não se percebe é esta falta de estratégia e de liderança na condução de um processo tão sensível como este.

Depois, existe um outro aspeto que deve merecer reflexão em todo este processo – a aplicação do conhecimento técnico e científico na definição dos normativos para a gestão da vegetação. Se olharmos para aquilo que sucede em outras partes do mundo, verifica-se, por exemplo, que na América do Norte apenas é exigida a intervenção numa faixa de 30 metros, o que reduz significativamente o volume de investimento a realizar. Na Austrália, por seu turno, preconiza-se uma solução ajustada ao nível de risco do local, que determina a realização de faixas de segurança de num raio de 30 ou 50 metros. Ali ao lado, na vizinha Espanha, na Catalunha apenas é exigida a intervenção numa faixa de 25m, tanto para casas individuais como para aglomerados urbanos, mas, na Galiza, as medidas legais em vigor já são semelhantes aquelas adotadas em Portugal.

Gostava, contudo, de aprofundar um pouco mais a solução adotada em França. Tal como em Portugal, é exigida a intervenção num raio de 50m. No entanto, a lei determina que a limpeza dos terrenos deve ser uma tarefa compartilhada entre vizinhos, o que faz todo o sentido pois o vizinho que tem o pinhal ou o eucaliptal ou um terreno inculto, com matos, não tem de pagar sozinho, do seu bolso, o ónus de proteger o bem (habitação) de um terceiro, só porque a autarquia autorizou a construção daquela habitação…

Face ao exposto, como já tive oportunidade de assinalar noutras ocasiões, justificava-se uma análise mais profunda do diploma que estabelece o sistema nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios – Decreto-lei n.º 124/2006, de 28 de junho. Uma análise participada, que sinalizasse os aspetos menos conseguidos da lei, os constrangimentos encontrados na sua aplicação e que apontasse soluções exequíveis para uma melhor concretização dos princípios de proteção das pessoas e bens no terreno. Soluções que passam necessariamente pelo envolvimento ativo das autarquias – Comunidades Intermunicipais, Câmaras Municipais e Juntas de Freguesia e das Organizações de Produtores Florestais, pois uma floresta bem gerida é uma floresta protegida!

Espero que estas águas de março tragam alguma sensatez e lucidez aos nossos governantes e que seja possível parar para pensar e olhar para este problema complexo num patamar acima da cegueira que tem pautado a ação governativa recente. É certo que a responsabilidade da proteção da floresta e dos bens e das vidas humanas acomete, em primeira instância ao Estado, mas é preciso sensatez para os cidadãos percebam o seu papel e possam ser envolvidos, de uma forma consequente, na mitigação do flagelo dos incêndios florestais em Portugal. Não é com leis feitas em cima do joelho, campanhas que, em vez esclarecerem, transmitem informações erradas e ainda confundem mais as pessoas que vamos conseguir vencer este enorme desafio.

Miguel Galante (Eng. Florestal)
Gazeta Rural, edição n.º 311 (27.2.2018)


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